quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O viajante





Na cadeira de balanço o embalo era alto, fazendo os cabelos loiros da menina balançarem ao vento. Os pés não alcançavam o chão e ela, de olhos fechados, viajava nesse meio de transporte só seu. Bogotá, Teerã, Paris, Marrakech, Cambera, Barcelona, Cairo... Cada visita à casa do avô a levava a um destino diferente no mundo.

Ele, que pouco saiu do Ceará, a fazia viajar como nunca ninguém mais nos anos vindouros soube fazer. Enquanto a menina balançava, cerrava os olhos e ouvia a doce voz do avô relatando com todos os possíveis timbres as curiosidades e descobertas desse novo mundo que ganhava detalhes e nuances surpreendentes naquela voz.

Repetidamente o avô dizia: o homem culto há de viajar, ou ler. Com o dinheiro curto, com 12 filhos para criar, ele lia. Vorazmente. Foi através das suas leituras e do seu amor por mim que eu dei a volta ao mundo.

Foi por meu amor e gratidão a ele que nunca mais voltei a sentar naquela cadeira.

Sem sua presença, minhas viagens tornaram-se outras. Mais “reais”, porém certamente menos felizes e mais vazias.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O silêncio e seu destino



Um estrondo. Um cimento que apara firme e cruelmente um corpo que cai das alturas. Um barulho de doer os ouvidos e a alma. Um fato. Sonoro. Todos acorrem e conferem o cimento manchado, porém intacto. Agora todos pensam numa só coisa. Na vida que o cimento roubou brutalmente.

Os fatos são sonoros. Uns mais, outros menos. Os silêncios, no entanto, nos passam despercebidos. O silêncio que ela fez dias a fio deveria comunicar. Sua missão não cumprida era essa. Era na verdade um grito, um pedido de socorro que a alma cansada não era mais capaz de ecoar.

Mas ninguém percebeu.

Marido, vizinhos, colegas. Ninguém. É que a dor, essa dor cotidiana que as pessoas carregam, não sai no jornal, não atrai atenção.

Cegos e surdos diante da exaustão de fatos que se sobrepõem continuamente, ignoramos essas dores. Até mesmo as nossas. As soterramos. E se alguém nos busca com dores até semelhantes, em geral adiamos, não lhes conferimos importância.

Por isso, ela preferiu tornar-se mais uma a lotar os consultórios.

Até aperceber-se do óbvio. O ouvinte pago não basta. É preciso mais. É preciso gritar essa dor presa, sufocada, porque o silêncio, esse companheiro indesejado, pode até não importunar o próximo, mas a ela molesta violentamente.

É um silêncio que vem do seu íntimo e que é mais forte que ela, um pedido de ajuda preso na garganta.

Um silêncio que apenas o cimento, seu destino, foi capaz de romper.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Protagonista

Amigos de conversas banais. Por vezes nem tanto. Certa vez ela chegou a comentar um fato íntimo que lhe embargou a voz e marejou os olhos. Ele não resistiu. Tascou-lhe na boca o beijo que há tempos ensaiava. Afinal, ela era tudo em que pensava.

(Congela-se a cena)

Ela, um tanto atônita, recolhe suas coisas, se despede rapidamente, mal trocando palavras. Ele permanece ali sentado, paralisado.

Na vez seguinte em que se encontram, mal se olham. Como se uma ventania houvesse varrido de todo a cumplicidade que antes vinha aos poucos se desenhando entre os dois. Toma fôlego e se aproxima: “Te assustou o meu beijo?”

- De jeito nenhum. É que não foi apropriado.

Apropriado? Ele sempre ouviu dizer que beijo a quem se ama não se pede. E, portanto, olhou-lhe com aquela interrogação expressa nos olhos. No mesmo instante ela sacou da manga as respostas que ele esperava, embora fossem para ele tão vazias de sentido. Eram adultos, vários relacionamentos anteriores, não havia fato no mundo pelo qual ele entendesse que um beijo exigia um protocolo. Era um beijo e só. E um beijo de amor, algo que não se contesta, que não se recusa, e muito menos que se pondere sobre.

- Não foi o beijo em si. Muito menos queria que você PEDISSE o beijo. Só tem que ser no seu momento. É o momento que chama o beijo. Um beijo não invasivo, porém firme. Que expresse quem você é. Que, por meio dele, eu saiba que é você quem eu quero como protagonista da minha vida, verdadeira novela mexicana.

- Tudo pra você é complicado, não é?

- Nem tanto. Em cinco minutos te explico:

O protagonista tem que ser gentil e educado, sem me entediar. Não abrir a porta do carro, eu mesma sei abri-la. Tem que ter pegada, mas nunca me fazer desconfiar que é cafajeste. Ser romântico, mas nunca ao ponto de me mandar um “carro de som com homenagem”. Românticos não podem ser bregas. E esse é um erro comum e fatal.

Ser presente, mas vez por outra ausentar-se. Homens grudentos podem ser os piores. Deve ser engraçado, sem contar piadas prontas. Aliás, piadas são, em geral, péssimas, e, se você não é comediante, resguarde-se. Precisa gostar de viajar, ler e se cuidar, mas não pode gostar de modismos. Nem muito arrumado, nem bermudão com chinelos para tudo. Em hipótese alguma pode usar chapinha no estilo “colírios da capricho”.

PRECISA acreditar em mim, mesmo nas mentiras. Sim, sem elas relacionamento algum perdura. E o mais importante. Para ser protagonista, não pode se repetir. Há de se reinventar.

Não me mande rosas, muito menos vermelhas. Bombons e cestas de café da manhã também são dispensáveis. Diferente do que dizem, o pior de tudo não é o desamor. É o tédio!

Terminada “a aula”, ele lembrou-se imediatamente de Fábio Júnior, mas jamais poderia dizer isto a ela, seria cafona: “Sou homem maduro, mas na sua frente, não sou mais que um menino”.

Topou o desafio e deu-lhe um beijo. Dessa vez confiante. Afinal, tinha que ter a postura de um protagonista.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Sapatos



As boates encostadas umas às outras. Do outro lado da rua enfileiram-se barzinhos, também lado a lado, onde se faz o “aquecimento”. Aquela cerveja especial - em geral cerveja, mas também pode ser vodca, tequila ou algo que o valha. Até altas horas, enquanto as boates não lotam, é nos bares que se bebe. Da mesa em que está com as amigas ela avista o namorado.

Choque!

Não, não saíram pra farra escondido como tantos outros casais naquela noite hão de ter feito. Ela se esforça, dá um sorriso amarelo e sugere que juntem as mesas. A cada dose, a tensão parece diminuir. Os amigos dele chegam até quase a parecer entrosados com os dela. E eles, inicialmente apreensivos, já roçam as pernas por debaixo da mesa.

Onze horas, meia-noite, dançar é a pedida. As boates agora já cheias. Luzes que piscam parecendo deixar a cabeça ainda mais zonza. Sim, devem ser as luzes apenas. O casal agora dança bem junto de maneira sensual. Ela ri solto, fazendo leves brincadeiras com a turma toda. Tudo é festa.

O sol já ensaia os primeiros raios e todos já se dispersaram. Ficou o casal que agora discute na calçada. “Vá à merda, seu puto”, ela grita. “Puta é você que até pros meus amigos dá bola quando bebe”, revida. Pronto, era a deixa que ela havia esperado.

- Eu disse que hoje era dia de me divertir SOZINHA. Mas o que você fez? Correu para o bar que sabe que eu gosto com seus amiguinhos, fingindo uma forçada “coincidência”. Cala a boca! Você sabe que é lá que eu vou sim, onde a cerveja é mais gelada e o rapaz da música ao vivo quando canta música romântica, sempre olha pra mim. É isso: você não suporta ameaças ao seu “terreno”, ao seu “domínio”.

- Nada disso!

- Claro que sim, mera demarcação de território. Até mesmo porque eu vi o jeito que você olhava para esse seu “amigo” inseparável...

E caindo em prantos, atirou-lhe na cara os sapatos que, cansada, trazia à mão.

Pausa. Que devaneio é esse, Mara Beatriz? Talvez a história daqueles sapatos atirados ao chão seja outra. Caídos de uma sacola a caminho do sapateiro. Ou simplesmente jogados por alguém que não mais os queria e não teve a cidadania de devidamente colocá-los no lixo. Certo que é segunda-feira de manhã e, enquanto você vai para o trabalho as ruas ainda recendem à farra alheia, mas deixar-se divagar assim já é demais. Ou será que é você que anda meio perdida como aqueles sapatos? Ou quem sabe esses calçados apenas te fizeram relembrar o quanto, no terreno do amor, mesmo os maiores dramalhões, as histórias mais patéticas, ainda assim podem ser belas... Quem saberá?

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A arte de desistir



As pessoas – pelo menos nas comunidades das quais até hoje fiz parte - têm pavor à desistência. Abandonou a academia? Deixou pela metade o curso de idiomas ou computação? Resolveu largar o curso superior para se preparar para um novo vestibular? Pronto! Você passa imediatamente à lista dos desajuizados e desprovidos de bom senso. Sujeito a carregar a pecha daquele que deixa tudo que inicia incompleto. Um estereótipo que me causa arrepios.

A vida é feita de pequenos aprendizados diários. Saber desistir é um deles. Por que não? O medo de deixar incompleto é como qualquer outro medo: há de ser vencido. E o que seria de nós se não pudéssemos experimentar? E, ao experimentar, desistir, trocar, reverter, sacudir? Ou mesmo largar, abandonar, definitivamente esquecer para todo o sempre?

Acumularíamos e completaríamos tarefas e mais tarefas que não condizem com nosso gosto pessoal, natureza, crenças. Tudo pelo zelo da completude. Invariavelmente receberíamos em troca um certificado, quase sempre esquecido em seguida a amarelecer no fundo de alguma gaveta. Quiçá não cassássemos – sempre e obrigatoriamente – com os primeiros namorados (as)?

Pobres dos nossos jovens cada vez mais desencorajados a desistir.
- Siga em frente, meu filho. Quer fazer outro curso, ao menos termine esse primeiro. (Mesmo que você atualmente estude bioquímica e tenha descoberto sua vocação para a licenciatura em geografia). É o que dizem todas as bem-intencionadas mães, avós, primas, amigas, vizinhas e todo mundo mais, seja do gênero masculino ou feminino, que mete o bedelho na sua vida.

Coitados dos que estão fadados a eternamente ensaiarem suas desistências, sem tomarem nunca nas mãos as rédeas da própria vida, o controle do próprio balde a ser chutado com vigor e satisfação.

Sinto ser desagradável, mas, seguindo essa trilha, possivelmente você, leitor, terá – se é que já não tem - uma profissão que detesta, com os neurônios entupidos de cultura inútil e um(a) esposo(a) que talvez há tempos já não ame, mas não cogita “abandonar”.

A boa notícia é: a gente pode ser feliz com várias pessoas e coisas que não são necessariamente as que convivemos atualmente. Melhor ainda, a gente pode ser feliz até com a gente mesmo. E sempre é tempo. Basta saber quando avançar ou jogar pelos ares.

Como diz Lispector em "A Paixão Segundo G.H.", “a desistência é uma revelação”. Quer tentar?

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Sou um ser dependente. E daí?

Há séculos as mulheres vêm lutando para conquistar o espaço que merecem na sociedade. Talvez por conta disso tenha surgido e reverbere até hoje com tanta força o mito da INDEPENDÊNCIA FEMININA. Um mito do qual fui vítima e também tirei proveito. Acho que com a maioria das mulheres é assim.

Explico. Tirei proveito na medida em que, enquanto acreditava ser possível essa tal independência, fui encorajada a assumir certas posturas que – para o bem ou para o mal - me tornaram quem hoje sou. Vítima no sentido de que me penalizei muitas vezes por ver o quanto para mim essa independência plena era inalcançável.

Enquanto acreditava no mito, fui por muitas vezes capaz de enfrentar o medo e tirar coragem de onde ela não existia. Exercitei a indagação, impus a mim mesma a liderança e a determinação. Tomei gosto por política (não como ofício, explico antes que perca os já poucos leitores) e outros temas dito masculinos. Tudo para mim parecia pouco. Trabalho, duas faculdades e desde cedo a minha própria casa. Afinal, eu TINHA que ser independente. Quanto absurdo! Como seres sociais que somos, é no mínimo inútil perseguir um ideal como este.

As lutas femininas devem prosseguir. Novas conquistas virão. E que venham! Mas não venha me falar nessa bobagem de independência. Todos nós – humanos - somos dependentes por natureza. E que bom que seja assim. Se, sendo dependentes, somos egoístas, prepotentes, arrogantes, imagine se não o fossemos.

Sou extremamente dependente, assumo. Menina e mulher, forte em toda a fragilidade que não temo demonstrar. Aprecio um ombro em quem me apoiar e chorar quando preciso for. O que não me impede de continuar gritando, escrevendo, e, principalmente pensando.

P.S.: Aos que me conhecem e tomaram um susto ao ler o título, antes que inadequadamente aleguem que eu não sei fritar um ovo e adoro trabalhar fora de casa e nunca nela (a casa), um aviso: (in)dependência não tem nada a ver com gosto ou talento pessoal. Sim, eu odeio cozinha e cheirar a óleo, alho e cebola. Mas também não faço a menor idéia de como trocar um pneu. Algum rapaz ai para ajudar?